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Intolerância: A Guerra Virtual

Por Benny C. Filho e Lethícia Gabriela
Edição: Vinícius Tognetti

Em tempos em que a maior parte da população mundial tem acesso à internet, encontramos diariamente ofensas e xingamentos gratuitos, em blogs, sites e principalmente nas mídias sociais. O que parece ser um espaço democrático é, muitas vezes, uma praça de guerra virtual, onde o outro parece não ter direito a opinião contrária. 


Foto: Fábio Prado
Estudos mostram que o número de páginas denunciadas, no Brasil, por causa da intolerância, cresceu 200% em apenas um ano. Mas até que ponto o ódio compartilhado no mundo virtual pode afetar o real? O que nós podemos fazer quando nos depararmos com situações de intolerância na internet? Nesta reportagem, confira essas e outras respostas sobre o tema.

Haters
Provavelmente você já se deparou com uma situação de intolerância na internet. Preconceito e discriminação marcam presença diária nos sites, blogs e nas redes sociais. Se antes existiam as manifestações de intolerância na base do “olho no olho”, hoje o aparente anonimato, atrás de uma tela e um teclado parece facilitar o trânsito das ofensas. 

Assim, os haters (palavra da moda para definir os “odiadores”, que criticam tudo e todos, sem muito critério) ganham cada vez mais espaço em nossa timeline com troca de insultos e comentários maldosos. 

Se a intolerância digital atinge até famosos, como o casal de atores Bruno Gagliasso e Giovanna Ewbank, alvo de muitos xingamentos depois que adotaram a pequena Titi, do Malawi, na África, imagine um pacato cidadão que muitas vezes desconhece seu legítimo direito de reagir pelas vias legais. O que mais chocou os envolvidos na “Operação Gagliasso” é que uma das autoras das ofensas era uma adolescente negra de 14 anos. A garota criou um perfil falso achando que não seria descoberta. Outros sete haters foram identificadas no caso.

A força e a velocidade de disseminação da internet motiva os ataques dos tais “odiadores”. Para a psicóloga e professora de psicologia da Unisanta, Sandra Bezerra, esse ódio muitas vezes só é revelado na rede. Talvez na vida real, ele nem fosse mostrado. Até porque, com base na psicologia analítica, as pessoas teclam de forma automática, não existe reflexão nos comentários. “Quando vemos uma imagem na internet, reagimos automaticamente, quase instintivamente. Em casos extremos, o hater nem sabe o motivo que o levou à agressão”, analisa. 

De acordo com a psicóloga Luci Mara Lundin, pós-graduada em Desenvolvimento Humano,  existe uma certa obrigação do ser humano em emitir alguma opinião, mesmo sem ter conhecimento suficiente. 
O número de casos de intolerância na web subiu de 16.600 para 26.800 em apenas um ano.
O racismo lidera o ranking
Foto: Fábio Prado
Números 
Alguns dados comprovam que a marcha dos haters avança pelo ciberespaço. De acordo com dados da SaferNet, ONG dedicada à defesa de direitos na internet, nos últimos três anos o número de páginas denunciadas por divulgar conteúdo de intolerância cresceu mais de 200% no Brasil. Entre 2013 e 2014, só no Facebook (onde ocorre quase metade desse tipo de denúncia), o número de casos saltou de 16.600 para 26.800. O racismo lidera o ranking, com 12 mil denúncias. 

Nas redes brasileiras, questões políticas dominam as manifestações de intolerância, com quase 220 mil menções, ou seja, mais da metade das publicações analisadas. O número é quatro vezes superior aos ataques de misoginia (ódio ou aversão às mulheres), que aparecem em segundo lugar. O Rio de Janeiro é o estado com maior volume de postagens intolerantes no país, seguido por São Paulo e Minas Gerais.

Casos e mais casos
De acordo com o advogado José Chiarella, especialista em direito digital e telecomunicações, a maioria dos casos atendidos por ele envolve adultos e tem relação com falsidade ideológica. São os chamados fakes.

Um deles aconteceu recentemente com uma jovem da Baixada Santista que teve suas fotos pessoais publicadas sem autorização em uma página do Facebook que aplicava golpes. Eles vendiam produtos, mas não entregavam. Foi uma amiga da moça quem estranhou o post e a alertou a vítima sobre o fato, mas já era tarde. As pessoas lesadas descobriram a página da moça, que sofreu na pele a hostilidade virtual, com muitos xingamentos e ameaças. Ela registrou boletim de ocorrência e a polícia investiga o caso.

Ainda de acordo com o advogado, também presidente da Comissão de Educação Digital da OAB Santos, o que mais preocupa é o cyberbullying, muito comum entre crianças e adolescentes. A exposição do colega de escola ou de trabalho a uma situação vexatória, com frases ofensivas e até divulgação de fotos íntimas, chamadas nudes, estão entre os casos de maior repercussão. 

Em um outro episódio envolvendo pornografia, uma mulher teve sua imagem divulgada em um site de relacionamento sexual. Pegaram uma foto em que ela aparece com o pai, em uma festa de fim de ano. Cortaram e mudaram completamente a conotação da foto colocando-a de meio corpo em uma situação comprometedora. Além disso, ainda publicaram com o nome verdadeiro da vítima. O site foi obrigado a retirar imediatamente as fotos e foi julgado como corresponsável, por permitir a publicação de fotos indevidas na página. 

Aos olhos da Lei
Casos que aconteceram na internet também são de responsabilidade da Polícia Civil. Em Santos, a delegada Edna Pacheco Fernandes Garcia, do Núcleo Especial Criminal (Necrim), trabalha tentando solucionar pequenas causas registradas na cidade. “Mesmo que para muitos a internet signifique máscara ou camuflagem, não é bem assim. Hoje em dia, tudo pode ser prova”, esclarece. 
Embora não exista ainda uma lei específica para punir todos os crimes praticados na internet, ofensas e crimes contra a honra, como injúria, calúnia e difamação são passíveis de punição, pois estão previstos no Código Penal.

A lei Carolina Dieckmann (12.737/12) entrou em vigor em 2013 após a atriz ter fotos íntimas divulgadas na internet, que foram copiadas de seu computador pessoal. A pena varia de três meses a um ano a quem, entre outros crimes, invadir dispositivos de informática a fim de obter dados particulares.

O famoso caso Fabiane de Jesus, que, em 2014, foi espancada até a morte por moradores de Guarujá também pode virar lei. Confundida com uma outra mulher acusada de praticar magia negra com crianças, Fabiane não teve tempo de se defender da notícia falsa espalhada pelas redes sociais. O projeto prevê aumentar em 1/3 a punição quando a incitação a crimes ocorrer pela internet ou por meio de comunicação de massa. A proposta já foi aprovada e deve ir ao plenário da Câmara Federal para votação.

Internet: para o mal e para o bem

Luciene de Faria, de 30 anos, nasceu com microssomia hemifacial, uma doença que desenvolve apenas um dos lados do rosto. O outro permanece atrofiado. Para ela, conviver socialmente sempre foi um desafio e um exercício de resignação. A partir do 4º ano do Ensino Fundamental, a garota parou de frequentar a escola. Foram oito anos estudando em casa, na cidade de Peruíbe. Acuada e deprimida, teve a juventude roubada. Não passeou e não teve amigos. As pessoas ao seu redor sempre a excluíam.

As fotos do rosto assimétrico de Luciene renderam comentários maldosos na internet. Foto: Benny Filho

Fechada em casa, Luciene usava o computador para se relacionar com o mundo, mas não teve sossego nem mesmo nas redes sociais. Muitas vezes era obrigada a “excluir” as pessoas de suas páginas pessoais. A moça conta que os “amigos” sociais chegaram a perguntar se ela não tinha vergonha de publicar seus retratos na internet. “No meu perfil, diziam que, se fosse pra aparecer, era melhor colocar uma melancia no pescoço”, conta. 


Em 2013, Luciene encontrou no cirurgião bucomaxilo, Alessandro Silva, da “Corrente do Bem”, uma rede de voluntários que ajuda pessoas que sofrem com dores ou com graves problemas na aparência, uma possibilidade de melhorar a qualidade de vida. Só tinha um problema: sem dinheiro nem plano de saúde, o sonho da cirurgia foi ficando distante.

Como parte de sua recuperação,
depois da cirurgia Luciane passou a
ser acompanhada por nutricionistas,
fonoaudiólogos e enfermeiros
que se voluntariaram. Foto Divulgação
Uma matéria sobre o seu caso, publicada em um grande portal de notícias, porém, em lugar de criar uma rede de solidariedade, atraiu uma legião de haters. Choveram xingamentos e manifestações de repulsa. Retraída, ela e o médico deram um passo atrás e adiaram o projeto. Por iniciativa do ortodontista Marcelo Quintela, uma nova matéria sobre o caso de Luciene foi publicada em uma página do Facebook de grande repercussão na Baixada.  O resultado desta segunda investida foi surpreendente. Luciene recebeu inúmeras mensagens positivas. “Tempos atrás eu só ouvia e lia palavras que me machucavam e naquele momento vi as pessoas dizendo que ia dar tudo certo, que eu ia conseguir, e ficaria e já era bonita”.


A cirurgia aconteceu no dia dia 6 de abril de 2017 e foi acompanhada de perto pela reportagem da Viral.  Seis médicos se revezaram durante onze horas no centro cirúrgico do Hospital Vitória. Luciene receberia alta naquela noite com um pouco de inchaço no rosto, o que é normal para o caso dela. Pela primeira vez em 30 anos seu queixo aparecia e o lábio inferior cobria os dentes de cima.
Assim como a tatuagem da fênix, que começa nas costas de Luciene e vai até a sua perna direita, ela sabe que ganhou a chance de uma vida nova. “Essa fênix com certeza vai me representar. O significado já fala: só a fênix renasce das cinzas e eu vou renascer”.


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