Pages

Censurado

Por: Amanda Oliveira, Karina Black, Luna Oliva e Raquel Vasconcelos

Se no mundo animal,  amamentação é algo natural, mas no caótico mundo criado por nós, humanos, chega a ser um ato revolucionário


Em 1594, a pintura de Jacopo Tintoretto trazia a imagem de Jesus Cristo cercado de pessoas em um banquete. No primeiro plano de L’Ultima cena, uma mãe que amamenta seu filho, se faz observadora da situação enquanto os homens à mesa, parecem não se importar. A imagem pertence à Catedral de San Martino, localizada na cidade de Lucca, Itália.

A distância de mais de quatro séculos que separa a cena congelada por Tintoretto das cenas que povoam praças, restaurantes e espaços públicos, do nosso tempo, esconde uma boa dose de intolerência da que nasceu e se consolidou ao longo da história em relação ao ato de amamentar. Na Bíblia, livro sagrado para muitas religiões,  frases como “tratamos vocês com bondade, qual mães aquecendo os filhos que amamentam” ou “és tu quem me confiou aos peitos de minha mãe” são encontradas no Velho Testamento. 

No contexto bíblico, portanto, a amamentação vem ao encontro de associações positivas, “tratar bem” ou ainda, estar em segurança. Tempos depois, o ato de amamentar parece esbarrar em cheio com a frase “no meu tempo, não existia isso”, fala saudosista com carga moral para dizer que algo era mais certo antes.


Visitantes inconvenientes

Ao atravessar a porta para a sala principal da Unidade de Terapia Intensiva (UTI) Neonatal, o cronômetro é acionado e Lucineia da Silveira, de 38 anos, caminha o mais rápido que pode para chegar até seu filho, José Bernardo. O tempo máximo que podem ficar juntos é de 20 minutos. Porém, estes poucos momentos em que estão próximos, sem paredes do hospital e de uma incubadora entre os dois, são roubados constantemente.
  
Enquanto amamenta o recém-nascido na poltrona da UTI, Lucineia escuta a voz de uma enfermeira dizendo que o horário de visita estava prestes a começar. O alerta é claro e doloroso: ela deve interromper a amamentação e devolver o bebê à incubadora. A justificativa é que o aleitamento materno poderia constranger os visitantes.

O fato aconteceu em fevereiro de 2016, quando José Bernardo ficou internado durante duas semanas na UTI por infecção hospitalar e dificuldades respiratórias. Hoje, ele já completou um ano de vida e continua mamando. 

“Até na igreja as pessoas me olham torto, com cara feia. Já me pediram para ir amamentar no berçário, dizendo que lá eu ficaria mais à vontade. É complicado, mas eu não privo meu pequeno de seu momento especial e simplesmente tento ignorar os olhares maldosos”.


Saindo do esconderijo 

Diferentemente de Lucinéia, a jovem Letícia Pantoja, de 22 anos, mãe de Manuela, de três, não conseguiu ignorar os olhares e comentários por um longo tempo. Toda vez que sua filha precisava se alimentar, iniciava-se a busca por um abrigo. Por diversas vezes, ela precisou escolher: ou cobria a filha com uma fralda, ou aguentava o cheiro dos produtos químicos, vozes altas e lotação dos banheiros públicos. Ela optava pelos banheiros. 

“Me sentia constrangida, péssima. Parecia que eu estava fazendo algo errado... Depois fui me adaptando, até porque minha filha só dorme no peito, só se acalma no peito. Hoje não cubro, e se minha filha quiser mamar até de pé, eu dou. Comecei a não me importar com os comentários”, diz. 


Contra a parede

Mãe de outra Manuella, de um ano, Tatiana Lima, 40, foi pressionada a parar de amamentar devido ao trabalho. Sua filha nasceu prematura e os cuidados com alimentação eram rigorosos. 
De segunda a sexta-feira, a correspondente bancária ansiava para que os períodos de agitação do trabalho fossem interrompidos pela chegada de sua mãe, Fátima, com Manuella. Só neste momento, era possível aproveitar alguns minutos de calmaria com a filha. 

Os intervalos se transformaram em um problema, já que a superior de Tatiana não entendia que a amamentação não era apenas um direito, era algo necessário. 

A intolerância se tornou hostilidade e Tatiana precisou encontrar uma forma de evitar conflitos. A saída encontrada não era nada confortável. A avó da Manuella, levava a bebê até o local, escondida. Chegando lá, Tatiana amamentava embaixo de uma escada, sob a pressão de ser descoberta pela chefe. Quando terminava,  entregava a filha à avó e voltava ao trabalho. A amamentação às escondidas durou quatro meses. Após este período ela pediu demissão e decidiu ter seu próprio negócio.


Os meses se passaram e novamente, dentro de um banco – só que desta vez como cliente -, Tatiana voltou a se sentir intimidada por amamentar. Enquanto aguardava atendimento no assento preferencial, foi alvo de uma conversa e olhares raivosos de um casal. 

“Eles não chegaram a falar algo, mas a mulher ficava falando para o parceiro e olhando para mim, com uma expressão do tipo ‘como você vai ficar amamentando ai?’ Percebia ela cutucando ele, falando coisas. Entendi que ela não estava gostando da situação. Eu não sei dizer se ele olhou para mim em algum momento, mas fiquei constrangida e levantei do lugar”, conta. 


Erotizada

Eva (nome fictício, pois não quis se identificar) nunca recebeu olhares intolerantes enquanto amamentava Paola, de três anos. Em contrapartida, foi alvo do olhar de desejo de um motorista do Uber. Ela e a filha haviam acabado de entrar no carro e se dirigiam a mais um dia de trabalho. Porém, o trajeto normalmente curto, parecia não ter fim, com as insistentes espiadas do condutor.  

“Acho que se alguém está amamentando, o básico que você tem que fazer é virar o rosto, certo? O cara não. Ele ficou frenético, olhando. Aí eu me senti mal. Me senti um lixo ali, em choque, na verdade”, explica.  

Com a filha no colo, Eva percebeu que estava trancada dentro de um carro com um estranho, que conhecia o endereço de seu local de trabalho e residência. Nesta situação, se sentiu amedrontada e indefesa.

O sentimento remetia a uma situação do passado, quando Eva e suas amigas foram vítimas de assédio moral por um stalker (perseguidor, que importuna de forma obsessiva outra pessoa). Ele roubou fotos de um evento de incentivo à amamentação, do qual elas haviam participado, e as publicou em uma rede social.

“As descrições eram nojentas, sabe? Erotizando a amamentação. Até então não tinha noção que existia gente que achava isso sexy, entende? Uma coisa bizarra”.
O grupo levou o caso à polícia, mas, a situação foi caracterizada somente como crime de assédio moral.

Apesar de diferentes, todas as histórias remetem a um denominador comum. Todas as mães sentiram-se constrangidas ao amamentar seus bebês.

A intolerância à amamentação é algo que pode vir de qualquer pessoa, em qualquer lugar. Por mais que o ato seja natural, há pessoas que o associam ao desrespeito e até mesmo à vulgaridade.


Insegurança que vende

A cena da mãe colocando um pano sobre a cabeça do filho durante a amamentação é nítida, mesmo que você, leitor, não esteja diante de uma mãe amamentando enquanto lê este texto. O gesto indica a necessidade, não se sabe se da mãe ou das pessoas ao redor, de esconder a mama.

“Nunca tapei o rosto do meu filho com lenço ou fralda, isso seria agressivo”, diz Thaís Oliveira, jornalista e autora do blog Brincar em Santos, que trata de assuntos relacionados à maternidade.

Essa “agressividade” seria o que a enfermeira Luzinete Sabino, integrante do projeto Anjos de Leite, classifica como “privação do estreitamento afetivo entre mãe e filho”. É no ato de mamar que o bebê interage com a mãe, ao mesmo tempo em que a olha.

A enfermeira ainda explica que a comunicação é rompida bruscamente quando se coloca o pano, e que a oportunidade de se fortalecer um vínculo tão forte quanto a gravidez, se desfaz, geralmente por receio ou timidez em relação ao público que observa.

A preocupação em torno da exposição do seio, abriu portas para um novo mercado. Em lojas virtuais, já é possível encontrar uma espécie de avental para cobrir totalmente a criança durante a amamentação. Para além do hábito de colocar um pano, passa a existir um produto com a finalidade específica de esconder algo que deveria ser encarado com naturalidade.



Em 2015, uma iniciativa similar provocou polêmica em Nova York, nos Estados Unidos, quando a cidade recebeu sua primeira “cabine de amamentação”. A empresa responsável afirmava que a instalação sem janelas era para “o conforto e privacidade da mãe e do filho”. 

“Nem sempre, quando se está com fome se espera por um lugar fechado para comer, por que com uma criança seria diferente?”, destaca Thaís, que também foi organizadora da Hora do Mamaço em Santos.

Ela ainda critica a erotização que algumas pessoas enxergam quando mães decidem amamentar em público, “No Brasil, só se pode mostrar os seios no carnaval, ou seja, quando a questão envolve o divertimento alheio”.

Apesar de desempenharem papeis diferentes, tanto o projeto Anjos de Leite, sobre assessoria de amamentação, quanto o Hora do Mamaço, encontram um ponto em comum: a disseminação de informação sobre o amamentar.

Tanto nas falas de Thais quanto de Luzinete, é possível perceber a ênfase na palavra informação. Algo que ambas entendem como um gatilho ou uma ferramenta de empoderamento pessoal de cada mãe, capaz até mesmo de libertá-las do medo sobre o que  o outro irá pensar.

Por meio dessa rede de mulheres, amamentar vai ganhando novos significados entre eles, o de ato coletivo de resistência .

0 comentários: