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“Quando eu mergulhei no azul do mar, sabia que era amor”



A música do grupo 14 Bis retrata o sentimento de Ana Lúcia Félix ao descobrir que seu filho tem autismo

“Tudo já estava programado para acontecer”. Esta é a frase que melhor define a mudança que ocorreu na vida da ex-professora aposentada do Ensino Fundamental, Lúcia Leite Félix, de 51 anos. Ela, que já tinha outros dois filhos, André Felipe, hoje com 26 anos e Ana Carolina, com 21, foi presenteada em 1998, com a chegada de Carlos Alberto, que hoje já está com 18 anos: um rapaz alto, magro, de sobrancelhas largas e olhar distante. “Quando veio o terceiro filho senti que era o meu bilhete premiado”, se referindo ao autismo de seu caçula.


Uma mãe coruja, assim que podemos classificar Ana Lúcia. Uma mãe zelosa e cuidadosa, que sempre estampa um largo sorriso no rosto quando fala de seus três pequenos. O termo mãe coruja não está somente na forma de dizer, na decoração podemos encontrar bibelôs que em forma do animal, que representa cada membro da família.

Criadora do Grupo Acolhe Autismo, lançado em março de 2012, Ana Lúcia lidera o grupo até hoje. O movimento vai além, ele se propõe a discutir e incluir o autista na sociedade, e tem como objetivo ser um canal de trocas de experiências entre as mães e familiares de autistas. Hoje o grupo criou uma rede, de forma informal, que apoia mães na luta por tratamentos e oportunidades melhores, além de batalhar por políticas públicas para os autistas e suas famílias.

Ana Lúcia é uma mulher que tem um coração enorme e luta não somente pelo seu filho. Ela se tornou uma ativista na luta por direitos mais amplos para os autistas, por meio do cumprimento e criação de políticas públicas que facilitem a luta de mães como ela. Porém, muitas das solicitações para as quais ela batalha já não servem para o seu caçula, mesmo assim ela ressalta: "Eu luto por eles, pois meu filho já tem uma idade avançada para determinadas lutas do grupo", ele passou da época escolar e seu distúrbio já esta sendo tratado.



Mãe de Carlos Alberto Júnior, o Caco, que aos oito anos revelou a notícia que envolveu um misto de sensações. A falta de apetite dele intrigava os pais que buscaram ajuda médica em vários especialistas. Mas até mesmo os médicos, psicólogos duvidaram que o filho de Ana Lúcia tivesse algum distúrbio mais sério. “Chegaram a me falar que era eu que não sabia cozinhar e nem alimentar meu filho direito. Eu já possuía uma bagagem com dois filhos e nada disso tinha acontecido. Fiquei aflita por não obter respostas”, conta.

Batalhadora, Ana Lúcia continuava nas buscas incessantes para descobrir o que poderia resolver a falta de apetite do caçula. Quando, em 2006, enquanto fazia buscas na internet, colocando os sintomas do filho, se deparou com o termo “autismo”, se encaixou como uma luva nos sintomas de Caco.

Em fóruns, chats e sites especializados sobre o assunto, Ana Lúcia começa a trocar experiência com outros pais que passavam pela mesma situação e buscavam ajuda. Mas foi em São Paulo que ela encontrou o diagnóstico para o seu filho em uma consulta com uma psiquiatra da Universidade de São Paulo. “Senti um grande alívio ao descobrir porque meu filho não se alimentava e apresentava comportamento diferente das outras crianças. Mas ao mesmo tempo, pensava em como eu daria o tratamento que ele precisava”, comenta. Ao contrário de muitas mães que ficam em choque com a notícia, a professora não lamentou o fato de ter um filho diferente, pelo contrário, foi um alívio descobrir o porquê do comportamento incomum do seu pequeno Caco.

“Por que eu?”. Esta, normalmente, é a primeira pergunta que vem à cabeça de quem recebe a notícia de que o filho é autista. Com Ana Lúcia foi diferente. Ela conta que durante esses anos de militância junto ao Grupo já viu diversos pais receberem a notícia e pensarem até em se matar, desistir, devolver o filho que haviam adotado ou não acreditarem naquilo que os médicos davam como diagnóstico. Mas, para Ana o que aconteceu não foi por acaso. “Quando está no nosso destino, não há como escapar”, acredita a professora.

Para evitar que mães passem pelo mesmo aperto, Ana Lúcia passou a estudar o autismo a fundo. Segundo ela, o distúrbio pode afetar as áreas sensoriais e se manifestar em sentidos diferentes para cada pessoa. No caso de Caco, o paladar foi afetado, fazendo com que ele não sentisse a textura e o gosto dos alimentos, o que tornava a refeição sem graça e sem prazer.



Além disso, o garoto falava pouco, era tímido e não se interessava muito pela escola. Esses sinais, além da falta de apetite e de um interesse obsessivo por coisas banais, como organizar brinquedos, aumentaram ainda mais a expectativa de Ana. “Ele gosta muito de carros. Quando era ele menor, fazia filas com carrinhos e dizia que era o trânsito”. O que parecia uma simples brincadeira de criança, na verdade, era um sintoma clássico do autismo: a obsessão por ordem, ou organização. “Eles precisam sentir que estão no comando. Se algo está fora do lugar, se irritam”, explica.

Caco não foi o primeiro desafio ligado à gravidez que afetou Ana. Exatamente um ano antes do nascimento dele, ela havia tido outra gravidez não planejada. Quando ela e o marido se acostumaram com a ideia da vinda de mais uma criança, descobriram que a gestação era sem embrião (quando o óvulo fertilizado se implanta no útero, porém o embrião não se desenvolve). O abortamento natural foi inevitável.

Após o trauma, enquanto estava sozinha no quarto do hospital, Ana Lúcia teve uma visão. Enxergou como se os pais de seu marido, que ela somente conheceu por fotos, estivessem vindo em sua direção. Como estava sem os óculos, ela passava a mão nos olhos para ver se certificar se o que via não era simples imaginação. Porém, a cena continuava diante de seus olhos, tal qual um filme em negativo. Ela viu seu sogro chegando mais perto, seguido da esposa que vinha com uma criança nos braços, envolvida em uma manta azul a cor símbolo do autismo.

Saindo do hospital, Ana contou para o marido sobre sua visão, que para ela na época, não teve significado. Um ano mais tarde, nasceria o seu terceiro filho, e veio o que para ela seria a resposta: A descoberta do autismo em seu caçula.

Ana enfrentou diversos percalços antes de descobrir o que realmente acontecia com seu filho. A passagem por oito pediatras que não conseguiram diagnosticar o que ocorria com Caco foi um das dificuldades. Para evitar que as mães que acabaram de descobrir o autismo em seus filhos tenham uma espera mais longa para o início do tratamento, Ana sempre indica os médicos pelos quais já passou e confia, já que é necessário um laudo que no qual conste o autismo para que os direitos das crianças sejam assegurados. “Eu encontrei uma médica muito ética”, diz.

Apesar de todo o conhecimento, ela também teve que superar uma série de obstáculos, que se tornaram uma verdadeira saga. Primeiro se viu obrigada a ir para São Paulo, onde conseguiria uma escola especial para Caco. Porém, antes disso, teve que dar entrada em uma solicitação na qual era necessária uma série de documentações para que o Estado arcasse com os estudos do filho.



A aposentada acredita que tanta burocracia para assegurar os direitos do seu caçula, seria uma tática para fazê-la desistir. Mas, por ser uma mulher determinada, em momento algum pensou em não continuar batalhando ou desistir da luta por algo melhor para seu filho.

Quando questionada se teve que alterar sua vida depois da chegada de Caco, tranquila, porém pensativa, Ana diz que não e nem teve que abandonar nenhum sonho por causa dele. As metas profissionais de sua vida já haviam sido alcançadas, porém novas surgiram, mas agora voltadas para a vida de seu filho. Ela viu que a partir daí não poderia mais ficar parada vendo que seu caçula precisava de uma atenção um pouco maior em situações simples, como ir para a escola.

Agora ela brinca que é uma espécie de “consultora online”. As pessoas que têm dúvidas a procuram através das redes sociais para pedir explicações e orientações sobre o assunto. Até mesmo pessoas de outros estados recorrem a ela para saber o que fazer. Há casos de outras professoras que também solicitam informações de como lidar com os alunos, além de pessoas que têm amigos passando por essa situação e não sabem como agir.

Uma mãe realizada. É assim que Ana Lúcia define o seu momento atual. O tratamento de Caco não depende mais de tantas medicações, ele somente toma um remédio para dormir, pois sua hiperatividade o impede de pregar os olhos.

A prova do resultado do esforço da mãe foi presenciarmos o que antes não acontecia ser pedido diante dos nossos olhos. “Mãe estou com fome, vai ficar ai conversando ao invés de colocar minha comida?”. A frase que Caco soltou próximo ao final da entrevista, mostrando assim, que o que antes faltava, hoje tem de sobra.

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