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Pintando o Caneco


As pessoas mais velhas geralmente têm boas histórias para contar. Mas há alguns mais experientes que começam a contar a trajetória de vida e fazem quem está em volta pare para ouvir. É o caso de Marion Oliveira Carvalho, de 82 anos, moradora de Peruibe. 

Aqui, abrimos um parêntese. Recentemente, ouvimos Marion para uma pauta sobre o Núcleo da Terceira Idade em que ela é diretora. Poucos minutos foram suficientes para que quiséssemos voltar para ouvir mais sobre esta senhora que gosta de "pintar o caneco" - expressão equivalente a bagunçar, utilizada no Século XX.

Dona Marion (ela não gosta que a chamem assim) é viúva e mora sozinha em um apartamento no centro de Peruibe. Solidão? Jamais. Ativa e sem tomar qualquer remédio, ela não para e se recusa a chegar cedo. Além do trabalho no Núcleo, a agenda semanal inclui cantar e dançar em serestas e luais e encontrar amigos em um bar. No pouco tempo que não está na rua, ler e escrever são os hobbies.

"Eu não envelheci. Não gosto de ficar em casa, sem fazer nada. Gosto de dançar, cantar, rir, conversar. Todo novo dia é oportunidade de aprender algo novo".

E o anseio de adquirir novos conhecimentos fez com que Marion descobrisse, por acaso, o que pode ser considerado seu dom: trabalhar a comunicação de crianças surdas.

Cientista social de formação, Marion morava em São Paulo, há mais de 50 anos, e um dia passou em frente a um prédio em que ouviu um barulho estranho: eram jovens surdos tentando falar. O trabalho fazia parte de uma equipe da França trazida pela PUC ao Brasil para implantar uma nova metodologia de comunicação, criada na antiga Iuguslávia.

A clínica estava com inscrições abertas. Marion se interessou pelo curso e se apaixonou. Ao fim das aulas, ela era dona do Instituto e cursava Fonoaudiologia na USP. Depois disso, foram 46 anos trabalhando com crianças surdas, antes de se aposentar. Ela foi considerada uma das 10 melhores implantadoras de próteses auditivas no mundo.

"Viajei o mundo com esse trabalho. Abri uma clínica em cada capital do Brasil, de Natal a Santa Catarina. Todas funcionam até hoje. A metodologia é assim. Eu não sei fazer sinal, mas ensino a falar mesmo, com ritmo. Algumas até escrevem".

O caso mais curioso da carreira na comunicação de surdos aconteceu depois da aposentadoria. Um casal veio da França ao Brasil disposto a fazer com que sua filha de dois anos fosse tratada com Marion. Quando chegaram a São Paulo, ouviram que ela tinha se aposentado e estava morando em Peruibe.

O casal de franceses, ele diretor da Unesco e ela dona de indústria de roupas, insistiram por semanas e ofereciam muito dinheiro. Marion, sem a estrutura necessária, recusava. Foi quando os pais da criança compraram uma casa no litoral de São Paulo e "a obrigaram" a implantar a metodologia.

Ao iniciar o processo, Marion descobriu que a filha mais nova, de seis meses, também era surda. O trabalho foi positivo, e, atualmente, uma é repórter de uma revista na Alemanha e a outra fala quatro idiomas e é professora de idiomas na França. 

"Essas meninas são excepcionais. Hoje são mulheres e conversamos sempre. A professora me enviou uma poesia em inglês recentemente. Fico muito orgulhosa".


Caso de filme de ficção 
Marion admite que sempre foi "namoradeira". E foi "furando o olho" de uma amiga que ela encontrou o amor de sua vida, com quem viveu pouco mais de 50 anos.

Em 1957, Marion namorava com Carlos, já há cinco anos, e morava em São Paulo. Ele disse a ele que viajaria para visitar seus avós em Ribeirão Preto no Carnaval. Ela, que gosta de festas, disse que ficaria. 

No sábado de Carnaval, uma amiga ligou para Marion e falou que seu tio, que é padre, estava com a casa vaga em Itanhaém. Sem nada marcado, ela aceitou o convite e foi com três colegas para a praia.

"Carnaval na casa do padre? É comigo mesmo"
Quando estavam comprando o bilhete de trem, Marion viu um "morenaço" atravessando a rua e vindo em sua direção. Era namorado de uma das amigas da viagem. "Prazer, Amauri".

As amigas estavam na casa do padre e começou a tocar marchinhas em um hotel vizinho. Elas, então, decidiram curtir o feriado e procuraram por um baile. Pegaram as batinas e fizeram fantasia. Curtiram a noite e voltaram para casa.

Na manhã seguinte, às 10h, a campainha tocou. Marion, com sono leve, levantou e foi atender. Era o "morenaço". 

"Fui chamar a minha amiga, educadamente (risos). Mas pensei que se ela não desse um jeito nele até tarde, era meu".

À tarde, depois de almoçarem feijoada em lata, Marion disse que queria ir para a praia. Sua amiga não quis. Amauri, sim. E combinaram de ir mais tarde. "Vi que a paquera ia dar pé. Ela era bocó. Cada um com a sua competência".

Enquanto conversavam, Marion disse que estava com vontade de tomar champagne com pêssego. Às 17h de um sábado de Carnaval. Amauri levantou, saiu, e voltou com a bebida e a fruta em uma hora. "Sabia que era meu".

Marion levantou para ir à praia, e Amauri foi junto. Sua amiga ficou em casa. Não deu outra. "Ele olhou para mim e disse que era sem vergonha, e que tudo que falassem dele era verdade, mas que tinha acabado naquele instante e nos beijamos".

À noite, em um clube, Amauri a puxou e perguntou se ela queria casar com ele. Sim. Horas depois do primeiro beijo. Marion, aos 22 anos, aceitou se unir a um homem de 32 anos que tinha conhecido horas antes.

Marion voltou para São Paulo e avisou seus pais que o casamento estava marcado para dezembro. O que começou por acaso durou mais de 50 anos de união, até Amauri falecer, em 2008.


Vida nômade e altos e baixos – dos hotéis de luxo ao porão
As circunstâncias da vida fizeram com que Marion “pulasse de galho em galho” desde criança. Seu pai era gerente de cassino e precisava viajar para as cidades com temporada em aberto. Santos, São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba... eram três meses em cada lugar. Acostumada com as viagens, ela já sabia como fazer sua mala e gostava de estar sempre viajando. O problema é que nunca pôde estudar regulamente em escolas.

“Eu achava aquilo muito lindo. Estava sempre viajando. Meus pais me alfabetizaram e eu sempre li muito. Minha educação foi baseada em livros, devorava Monteiro Lobato, por exemplo. Só pude estudar de verdade depois dos 10 anos”.

Como os cassinos movimentavam muito dinheiro, sua família ficava em hotéis de luxo e o pai ganhava muito dinheiro. Isso até 1946, quando o presidente Dutra decidiu proibir os jogos de azar. Sem dinheiro guardado, os pais perderam tudo. A solução foi morar em um portão de um cortiço na rua Vergueiro, em São Paulo.

“Foram três meses naquele porão. Lembro de ver os pés das pessoas andando por uma janelinha”.

A situação financeira melhorou quando a sua mãe, homeopata, voltou a trabalhar. Com o auxílio do então ministro Oswaldo Aranha, ela voltou a ser chefe do serviço de saúde no Estado, cargo que ocupava antes de “largar tudo” por causa do marido. 

Como a mãe precisava percorrer cidades de São Paulo para inauguração de hospitais e fiscalização do serviço de saúde, Marion voltou a ser nômade, e a viver bem. Em Santo Antônio do Pinhal, um dos locais em que morou, ela andava de bicicleta dentro da casa que compraram.

Quando casou, seguiu a vida sem rotina. Amauri, seu marido, era gerente de banco. O início do matrimônio foi em São Paulo e depois em Brasília, quando ele foi transferido. Marion só aquietou ao passar a morar em Peruibe, onde está há 34 anos, mas o tempo inclui viagens pelo mundo para implantar a metodologia de comunicação de surdos.



Último sonho

Marion diz que sabe que está na fase final de sua vida, mas ainda deseja um “último desejo”: ela quer ver o Hotel Glória, desativado, transformado em um curso de hotelaria do Senac.

A moradora de Peruíbe enxerga grande potencial turístico na região, e acredita que o ensino poderia gerar muitos empregos.

“Seria um curso de cuidar da grama até administração, cozinha, rouparia, tudo. Infraestrutura de recepção é falha em todos os setores. Já apresentei na Câmara e ao prefeito, mas nada ainda Meu sonho é esse, mas acho que não vou conseguir. Colocaria jovens lá, tiraria desse caminho natural de drogas e prostituição. Quem sabe eu não consiga?”.

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