Pages

O toque que vem da senzala


A necessidade de expressão dos negros criou uma cultura, o Maracatu, que serviu para motivar a vida daqueles que sofriam com a escravidão



Música, dança, tambores, figurinos, alegorias cor e muita alegria. Desde 5 de outubro de 2003 a Baixada Santista tem o seu próprio grupo de maracatu. De origem pernambucana, com mais de 200 anos, o maracatu de baque virado nasceu na cidade do Recife e é uma manifestação de resistência do povo negro que veio da África, para ser brutamente escravizado no Brasil. Com fé nos orixás (que são elementos da natureza), na religião de matriz africana e persistência em manter sua identidade, o negro fez e faz com que esta rica cultura esteja presente em diversas regiões do Brasil

O maracatu é oriundo da coroação dos reis negros no Brasil, instituído nas irmandades de Nossa Senhora do Rosário no século XVII. No século XIX, adotou o nome de maracatu, que surgiu de maneira pejorativa.

Alfaias, agbês, gonguês, caixas, ilus, atabaques e mineiros, instrumentos tradicionais dessa manifestação cultural afro-brasileira, chamam a atenção daqueles que passam pelo Centro histórico de Santos. O som é potente e enérgico. E as loas, entoadas com movimentos corporais peculiares, despertam quem escuta o som dos instrumentos da rua.

O Quiloa

A história do Maracatu Quiloa começa em outubro de 2003, quando um grupo de amigos de Santos participou de um encontro de maracatu no Sesc Itaquera, onde tiveram o primeiro contato com os tambores.



O evento aconteceu em um domingo em São Paulo, e já na segunda-feira, por coincidência, os amigos encontraram em Santos um tambor à venda, pois o dono o comprou por engano pensando que era um instrumento de percussão de escola de samba. Logo após, deram início aos ensaios do grupo, que seguiu por meses ainda sem nome.
Um dos integrantes, que na época assistia na TV Manchete a novela Xica da Silva, gostou do nome de um dos personagens da trama, que se chamava Quiloa. Foi a partir daí que surgiu a ideia de dar esse nome para o grupo. Mais tarde, descobriram que a palavra ‘loa’ no vocabulário do maracatu significa o canto entoado.

Com o tempo o Quiloa construiu uma relação de respeito às tradições das culturas da Nação do Maracatu Porto Rico e Nação do Maracatu Encanto do Pina, ambas de Recife, Pernambuco. Nações são grupos que mantém a manifestação ligada diretamente aos terreiros de candomblé, por mais de séculos.

A indumentária, os passos de dança e o impressionante ritmo da percussão não passam despercebidos. “O maracatu de baque virado é tradicionalmente uma manifestação que ocorre na rua”, explica Felipe Romano, um dos fundadores e coordenador do Quiloa. Hoje, após a consolidação do primeiro grupo de maracatu de Santos, Romano não é somente um aprendiz: é um dos batuqueiros da tradicional Nação Porto Rico de Recife. O grupo reúne atualmente cerca de 130 membros em seu principal evento, o cortejo, que ocorre anualmente 15 dias antes do Carnaval no Centro histórico de Santos.

Os ensaios acontecem na sede do Quiloa, na rua General Câmara, 99. O cortejo do Quiloa começou em 2006 e vêm se tornando tradição na Baixada recebendo público e participantes do Brasil inteiro. 

Não tem idade e nem classe social, como explica Romano. O grupo reúne todo tipo de pessoa: estudantes, professores , médicos, auxiliares de serviços gerais, jornalistas, assistente sociais, entre outras profissões. A idade dos integrantes também é variada. Se há adultos na formação, crianças são bem-vindas. Este é o caso da Manuela Romano, que acompanha o pai, Felipe Romano, nas oficinas e cortejos . Hoje, aos 9 anos, Manuela toca agbê e participa dos eventos ligados ao maracatu. “Nunca fiz as oficinas, mas aprendi a tocar os instrumentos sozinha”, conta Manu.

Há quem diga que o maracatu é um chamado, uma cultura que transforma vidas. Guilherme Marques Zupo, de 25 anos, que está no Quiloa desde 2012, já conhecia a cultura, pois já tocou em Maringá e em Recife, com a Nação Porto Rico. Neste último local conheceu Felipe Romano. “O interesse pela cultura popular e a religiosidade foi o que me levou ao maracatu. A cultura fortalece as religiões africanas e, por isso, quando soube que viria para Santos, entrei em contato com o Romano e comecei a participar do Quiloa”, afirma.

De acordo com Zupo, o maracatu é uma cultura antiga e a maioria das pessoas se conhece, o que torna a cultura uma grande família. “Costumo dizer que se quero ir para qualquer lugar do Brasil, tenho onde ficar, o maracatu é uma família”, afirma.

Para a estudante de Serviço Social, Hellen Neves, de 23 anos, o principal motivo para que ela chegasse ao encontro também foi o interesse pela história de seus ancestrais. A jovem frequenta o Quiloa Maracatu há dois anos e afirma: ‘’Eu precisava me reconhecer como mulher negra, e encontrei um espaço que conversava com o que eu buscava sobre os ancestrais da minha descendência’’.

Antes de conhecer o maracatu, Hellen conta que já havia tentado tocar diversos instrumentos e que, após o envolvimento com o ritmo marcante dos tambores, ela conseguiu tocar o agbê já no primeiro contato.

O envolvimento com um coletivo de mulheres negras, segundo Hellen, é um dos caminhos que ajudam algumas pessoas a achar sua identidade. ‘’O maracatu vira parte de nossa identidade e passamos a manifestar expressões de cultura e arte em nosso dia a dia. Hoje, por exemplo, estava em uma reunião com algumas colegas da faculdade e as chamei para conhecerem o ritmo. Elas ficaram supercuriosas e talvez venham comigo algum dia’’, acredita.

As oficinas

No total, o Maracatu Quiloa oferece três opções de cursos:

- O maracatu de baque virado – o baque da Nação Porto Rico e Encanto do Pina , aulas às segundas-feiras, às 19 horas;

- Pandeiro e Percussão para educadores, práticas e cantigas para se trabalhar na sala de aula. Encontro às terças-feiras, às 19 horas.

As oficinas terão início em Junho. Informações gerais e valores dos cursos no email oficinas.quiloa@gmail.com ou no whatsapp (13) 9962-1754 ou no endereço Facebook/quiloa


Glossário


Alfaias – Também chamado de bumbos. São tambores graves, de grandes dimensões, feitos de compensado e, em alguns grupos de tronco da macaíba (árvore que se parece com a palmeira). Seus aros são feitos de genipapo e o bojo é trançado por uma corda de sisal. Com frases sincopadas e bem marcadas, as alfaias são responsáveis pelas características principais de cada toque ou baque. Muitas vezes dividem-se em três grupos, de acordo com tamanho ou afinação, tendo cada grupo uma função rítmica diferente.

Agbê – Também conhecido como xequerê, é composto por uma teia de miçangas que envolve uma cabaça. Instrumento que veio dos terreiros para o batuque do maracatu com a função de condução similar ao do ganzá.

Gonguê – Instrumento formado por uma campânula, objeto de ferro em forma de sino, com um cabo que serve de apoio para as mãos. Tem o formato aproximado de um sino de ponta a cabeça ou um agogô de uma só boca. As frases rítmicas do gonguê são geralmente formadas por contratempos e síncopas, permitindo grande liberdade de improviso.

Caixa de guerra – Tambor agudo que produz um som alto e característico. Possui frases rítmicas com grande quantidade de notas, o que dá a este instrumento a possibilidade de coordenar e harmonizar as alfaias. São as caixas de guerra que dão a chamada para a entrada dos outros instrumentos.

Atabaque –
Instrumento primo do tambor ilú, típico de terreiro, tocado com as mãos. Seu fraseado são toques referentes a determinados orixás, a quem o maracatu presta sua homenagem. Nos cortejos, estes ilús são retirados do tripé e são amarrados ao corpo do batuqueiro por uma faixa.

Ilu, Ilú, Ylu ou Elu –
Pode ter mais de uma denominação. É um tipo de tambor afro-brasileiro usualmente utilizado em rituais religiosos, sobretudo na região Nordeste do Brasil. Normalmente tocado com as mãos, é construído geralmente sobre uma base de madeira em forma de cruz, sendo primordialmente afinado através de hastes de ferro.

Ganzá – Também chamado de mineiro. Chocalho cilíndrico responsável pelos registros mais agudos do conjunto. Um dos instrumentos mais versáteis da cultura afro-brasileira. Possui inúmeras possibilidades de sutis variações rítmicas.

0 comentários: