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No espelho, não reconheço mais o Marcelo


Marcella Sant Anna nasceu Marcelo. com muita Coragem e persistência superou o preconceito e assumiu a transexualidade


Texto Roberta Caprile  Fotos Jheniffer Adorno 

Realizada. É assim que Marcella Sant Anna, de 28 anos, se descreve hoje. Mas nem sempre o sorriso tímido foi tão fácil. Para se sentir confortável dentro da própria pele precisou passar por muita coisa, ainda quando menino. Ficou confuso? Pois é. A infância de Marcella também foi de muita confusão. “Eu me via de uma forma e me enquadrava socialmente de outra”, explica ela.

“Masculino” ou “Feminino” eram e ainda são as opções possíveis no campo ‘sexo’ da certidão de nascimento no momento em que a obstetra constata o órgão sexual do bebê. A definição médica é vista como obstáculo para quem não se identifica com o que está escrito ali e luta para mudar algo a que nunca teve direito de escolha.

É a realidade de Marcella, que nasceu no dia 17 de setembro de 1987, como Marcelo. Mas não apenas os aspectos físicos e padrões estéticos definem um gênero, e Marcella é prova disso.
A confusão interna veio cedo, lá pelos nove anos. “Nunca me senti confortável para brincar com meninos. Percebia uma repressão de todos os lados. A sociedade cria o menino para ser menino e a menina para ser menina, então é muito confuso”.

Quando tinha 10 anos Marcella e a família, que eram de Santos, se mudaram para São Vicente. Criada pela bisavó materna, apesar de sempre ter a mãe presente, ela começou a estudar no Fortec, onde concluiu o Ensino Médio.  Na época, ainda menino, tinha um comportamento mais heteronormativo, mas sofria com hostilidade e agressões.

Sant Anna chegou à adolescência sem ter ninguém para conversar. Não entendia porque se sentia tão diferente. A autoaceitação veio aos 16 anos, quando notou que em sua classe havia gays, transexuais e meninas descobrindo-se lésbicas.  Foi nessa época que Marcella beijou pela primeira vez seu “amor platônico”, um garoto da classe.

“Eu lembro que a gente estava no banheiro da escola e quando nos beijamos foi aquela coisa meio de livro mesmo. Eu não sentia o chão, um segundo parecia que demorava 10 minutos”.
O garoto, já assumido, foi quem impulsionou Marcella a se apropriar de sua orientação como homossexual. A partir desse momento as piadinhas começaram a ser respondidas de cabeça erguida.

UNIVERSO FEMININO
A descoberta da profissão foi logo aos 17 anos. No último ano do Ensino Médio, Marcella começou a trabalhar como ajudante de cabeleireiro.

Depois de dias de trabalho intenso ela queria extravasar. Sua diversão fora da escola e do salão passou a ser o “point” LGBT mais popular da Baixada Santista há quase 30 anos, o Quiosque da Cris, em São Vicente. Mesmo antes dos 18, Marcella passou a frequentar baladas e descobriu o palco. Vieram os shows e até participação em concursos de Drag Queens.

Durante o ensino médio ela se trasvestia apenas para os shows. “Até então eu me via como homossexual e mantinha relação com outros rapazes gays”, explica. Marcella ainda não imaginava que na intimidade mesmo era transexual, tanto que já se sentia muito bem vestida de mulher.

Ela mergulhou cada vez mais fundo no universo feminino. Comprou peruca de cabelo natural e até deixou o cabelo crescer. O ápice foi o começo da automedicação com hormônios. O corpo ganhou mais curvas. Nas blusas fluídas que desciam sobre seu colo, os seios apontavam. “Quando alguém comentava sobre a mudança, eu falava que estava fazendo tudo pela arte. A resposta estava pronta na minha cabeça, eu buscava uma desculpa para mim mesma por não me aceitar”.

O “estalo” aconteceu em uma festa na casa de um amigo. Na ocasião, uma antiga colega de escola chegou transvestida. “Eu conheci aquela moça como menino e lá estava ela com o corpo feito, peito, cabelo enorme. Quando eu a vi, pensei: quero ser assim 24 horas por dia.”

DOCE ILUSÃO
“Mãe sente. Eu sabia da condição da Marcella, desde que ela tinha dois anos”, diz a dona de casa, Claudia Aguiar Santana.

A “descoberta” aconteceu durante a primeira Parada Gay da Baixada Santista. Foi a primeira vez que Marcella, vestida de mulher, encarou a rua e a luz do dia. “Senti que saí do gueto, da obscuridade”. Uma vizinha da família viu Marcella e foi contar para a bisavó dela.

O medo de magoar os familiares e até de ser expulsa de casa fez com que Marcella não voltasse para casa naquele dia. “Desmontada”, de cara lavada pelas lágrimas, Marcella buscou abrigo na casa de uma amiga.

Cláudia Santana relembra a história: “Umas onze da noite uma amiga dela me liga, pensei: mataram, espancaram ele. A amiga então falou que não sabia como contar o que tinha acontecido e eu respondi: meu filho é ‘viado’ o que aconteceu? Bateram nele?”.

Depois desse dia Marcella percebeu que, de fato, a mãe sempre soubera. Diante da aceitação da mãe, teve certeza de que não devia satisfação a mais ninguém.

À FLOR DA PELE
Aos 18 anos Marcela optou pela terapia hormonal com um investimento do próprio bolso, usando técnicas correntes no mundo transgênero, na base do ‘diz que me diz’. Só há dois anos consultou-se com uma endocrinologista, que cobrou R$ 250,00 por um atendimento decepcionante. A médica afirmou que não receitaria remédio algum. “Ela foi negligente, não me pediu exames para saber se eu estava ferrando com meu fígado por tomar remédio em excesso, foi totalmente omissa”.

A única informação construtiva que tirou da sua primeira consulta como transgênero foi sobre a existência do ambulatório de transexualidade do Hospital das Clínicas, em São Paulo. “Entrei na internet, mas era uma fila enorme, não consegui nem um encaixe”.

Demorou, mas o destino deu um empurrãozinho. Através de uma postagem no Facebook, feita por Taiane Myiake, transexual ativista, Marcella tomou conhecimento do Ambulatório de Transexualidade que funciona desde o ano passado no hospital estadual Guilherme Álvaro, em Santos.

Além de procurar um tratamento hormonal correto, foi atrás de um sonho, a troca da documentação. “Eu só lembro realmente do meu nome quando vejo um documento ou uma foto antiga. No espelho eu não reconheço mais o Marcelo”, confessa.

Ela já venceu uma das batalhas. Depois de passar por diversas consultas psicológicas no Guilherme Álvaro, Marcella conseguiu uma declaração para alterar o nome de registro. Depois de inúmeros constrangimentos por ter o nome Marcelo em seus documentos desde problemas com cartão no supermercado, até falta de respeito em hospitais, Marcella poderia enfim se identificar com o nome que escolheu.

Na rua não é diferente. Segundo dados da organização Transgender Europe, o Brasil é o país que mais mata transexuais e travestis. “Eu, graças a Deus, nunca levei um tapa no meio da rua. Xingamentos sim”.

Na luta contra o preconceito, ela tem uma aliada e tanto. Desde o episódio da parada LGBT, Cláudia, a mãe, virou a grande defensora da filha. “Se tivesse que ter de novo, eu a teria do jeito que ela é agora. Se ela não contar com o amor da mãe o que seria? Eu defendo mesmo”.


REDESIGNAÇÃO 

“A primeira pergunta que as pessoas me fazem é se eu sou operada”. A resposta é não. Marcella não é operada e nem quer. Nem por estética, nem para obter aceitação alheia. “Eu gosto e adoraria ter a oportunidade de voltar em outra vida travesti. É diferente, não sou nem uma coisa nem outra. Eu sou transexual, travesti, transgênero. Sou isso e ponto”.

Só existe um motivo que a faça mudar de ideia: poder gerar uma vida. “Se um dia a ciência fizer com que eu possa gerar uma criança, aí sim serei a primeira a entrar na fila”.

EXPERIÊNCIAS
Após o termino do seu primeiro relacionamento Marcella decidiu abandonar tudo e partir para São Paulo, onde sentiu-se pela primeira vez  em casa.  “São Paulo é uma terra que abraça”, diz ela. Marcella morou em uma república com outras oito travestis que se prostituiam, e por influência delas, chegou a se prostituir por seis meses.

Policiais que chegam brigando, pessoas fedidas, bêbadas e até caras legais. Essas são as principais lembranças que Marcella tem da época. “Foi uma experiência interessante e não me arrependo. Mas não é fácil e é um risco à saúde física e mental. Hoje eu relembro e penso: prefiro ficar das 9h às 22h com o secador e a escova na mão, puxando o cabelo do povo, fazendo escova e engolindo progressiva”.

Com o passar do tempo, percebeu que apesar de morar com outras travestis estava, na verdade, no meio de uma competição de egos onde a mais bonita era a que levava a medalha.

Frases como “travesti sem silicone não é travesti, é viadinho”, começaram a machucar Marcella. O mundo ao qual ela acreditava pertencer dava-lhe “surras” também. Ela então desceu a serra em busca do tão desejado silicone, porém, de forma clandestina.

Na primeira tentativa, foram 26 furos na região dos glúteos para a injeção do silicone industrial, fechados com cola Super Bonder, na raça e sem anestesia. E 15 dias dormindo de barriga para baixo, sobre uma tábua de madeira. Esse foi o resultado do procedimento realizado no corpo de Marcella por outras travestis, chamadas de “bombadeiras”.

“Demorou umas três horas e foi muito doloroso. A mão da mulher tremia ao injetar o material, de tão denso. Tem muita gente que morre assim e eu dei sorte. Fiz por pressão, mas não me arrependo. Coloquei pouco”, diz Marcella.

CERTO POR LINHAS TORTAS
Marcella voltou para São Vicente depois de seis meses porque a bisavó adoeceu. “Ela não conseguia viver sem mim”, brinca.

Na praia conheceu seu atual namorado, o autônomo Yuri Fernandes Urnikis, 27, através de um amigo em comum. A princípio nenhum dos dois tinha a intenção de um relacionamento sério, mas o tempo passou e o namoro foi oficializado em maio de 2011. Pelo fato de Yuri só ter tido relacionamentos héteros, eles tinham receio da reação da família dele.

“Uma das primeiras perguntas que o pai dele me fez foi sobre o que eu fazia. Quando falei que era cabeleireira acredito que ganhei alguns pontos”.

A partir daí a aceitação só cresceu. Hoje Marcella frequenta  normalmente a casa dos pais de Yuri, que são budistas, A sogra “querida”, como ela mesma diz, aproveita o dom de Marcella para cortar os cabelos. “É um relacionamento normal, me sinto muito em família”, diz Marcella, com um sorriso no rosto.

LÁ NA FRENTE
“Eu acredito que a identidade de gênero daqui a alguns anos não vai mais ser estabelecida. As pessoas vão viver da maneira que se acham no direito de viver. Talvez as crianças não sejam mais registradas como menino ou menina, talvez seja adotada uma nova forma de registro em que se respeite isso”, diz Marcella.

Fazer faculdade está entre seus planos, um feito que ela quer dedicar à mãe Claudia. Outro sonho é formar novos cabeleireiros. E por último, mas não menos importante, Marcella lembra de Yuri: “quero continuat com ele até ficarmos bem velhinhos”.

“Tudo o que eu tiver com conforto e felicidade, serei a pessoa mais feliz do mundo. O resto são as lutas do dia a dia que não vão terminar tão cedo. Mas graças a Deus é uma batalha de mais vitórias do que derrotas”, completa.

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