Quando o relógio marcou 18h00 de sábado, 27 de fevereiro, uma notificação no Facebook avisou que a noite seria de pura festa. Não era feriado, nem mesmo a data remetia a algum acontecimento especial para os santistas ou para os amantes de boa música. O convite virtual para a “festa de ocupação” não explicava o que era uma “festa de ocupação”, mas bastou uma navegada no Google para saber sobre esse tipo de evento: não é preciso motivação especial para acontecer, trata-se apenas de uma celebração à arte, ao bom convívio entre pessoas e um pretexto para reunir quem gosta de tudo isso no espaço público. Um pouco de suspense e improviso ajudam a aumentar o charme dessas festas, o que explica o fato de, em alguns casos, o convite chegar pelas redes sociais poucas horas antes de soarem os primeiros batuques.
O rala coxa daquele sábado chamava-se Coco de Garrafada. Não é o único baile com a ideia de ocupação urbana na noite santista, mas é um dos poucos que têm o “coco” como anfitrião. Coco é o nome do gênero musical que mistura influências da umbanda e do candomblé, mas a galera costuma chamar de “som de preto” ou “som de terreiro”. “Segura as telhas que eu vou fazer a terra tremer! Meu coco é forte e tem azeite de dendê”, bradava a mensagem estampada no convite do Facebook. Horário marcado: 23 horas. Local: Praça dos Andradas, em frente à cadeia velha. O convite continua dando o tom da festança: “vai ter pisada forte, dança e daquelas que não se pode ficar parado; vai ter raiz, ciência, calor humano e tudo de graça, na praça, do povo, para o povo.”
Só nos dois últimos meses três festas com esse conceito povoaram o centro histórico santista. Além da Coco de Garrafada, teve também a ABSM e a famosa Jambu. No geral, a proposta varia de uma para outra. A primeira traz o calor do nordeste brasileiro, saias rodadas, chinelos arrastados, música ao vivo e uma bandeira contra o preconceito racial. Já a ABSM abusa de cor, luz, e faz da música eletrônica trilha sonora de um ambiente repleto de alto astral. Já a mais conhecida, a Jambu, não só valoriza o cenário alternativo da MPB, como incentiva as mais diversas intervenções artísticas e arquitetônicas no espaço público. Sua última edição, no sábado, 19 de março, foi um grande festival de 18 horas que proporcionou suspense ao manter em segredo o local do evento até poucas horas antes da festança. O que é comum nas três festas: todas lotam.
A NAU PEDE PASSAGEM
Uma hora antes do horário combinado a equipe da revista Viral já estava no local combinado para reportar o agito da Coco de Garrafada. Nenhuma pinta de festa na praça sonolenta, com poucos moradores de rua, alguns taxistas e muitas latas repletas de lixo. Nenhuma caixa de som, nenhuma latinha de cerveja.
Quem ainda não está acostumado à dinâmica desse tipo de reunião poderia até pensar que o role tinha miado. Conforme os convidados foram chegando, a praça vazia se encheu de cor. Do nada surgiram computadores, mesas cheias de botões coloridos, equipamentos de som e isopores gigantes para onde eram arremessadas dúzias de garrafas de Catuaba Selvagem. A “nau” da ferveção estava pronta para zarpar. O batuque comandado pelos “tripulantes” Piratas do Maxixe, responsáveis pela festança, cresceu a ponto de chamar a atenção até de quem passava nas ruas laterais. Chegam as meninas a bordo de suas longas saias e os meninos de largas bermudas. Chinelos de dedos estalam no chão, marcando o ritmo da melodia. Não demorou muito para que o lugar se transformasse num baile com calorosos dançarinos.
A Garrafada, assim como tantas outras festas de ocupação urbana, se propõe a promover um grande encontro a céu aberto com pessoas de várias tribos, ocupando lugares inusitados do espaço público. Trata-se de uma nova forma de ocupação pública e expressão artística, social e, muitas vezes, política. Encontros de pessoas conhecidas ou não, que propõem uma releitura dos lugares que por vezes cruzamos e não percebemos ou sequer damos importância.
No meio da balada, a estudante de 18 anos, Paula Granado, que arriscava discretos passos de dança durante a entrevista, disse que gostava daquele som e já havia comparecido em muitas outras festas de ocupação em Santos. Ela usava uma roupa bem leve, e que estava em harmonia com o tom do evento. “Não tem conflito, a maioria das pessoas se conhece e todos estão aqui apenas para curtir um ambiente diferente”.
Na alta madrugada, contar o número exato de pessoas dançando foi uma tarefa difícil. Elas chegavam de todas as partes e se entregavam de corpo e alma à tal música de preto. Alguns mostravam outras habilidades artísticas, como malabarismo, danças típicas e até capoeira. A estudante de assistência social, Kidauane Regina Alves, de 20 anos, por exemplo, sem perder o ritmo, jogava a arte marcial brasileira com amigos nos acordes da banda Coco das Águas Doces, que veio de Jundiaí para tocar no ponto máximo da ferveção, por volta das 03h00 da madrugada.
“Trata-se de um grande resgate. Trazer pessoas diferentes, para lugares diferentes, e fazer algo diferente. Tudo, claro, com peso cultural muito forte”, definiu a estudante. A Jovem destaca que ocupar espaços como foi feito com a Garrafada reforça a necessidade da população de entender a cidade de forma mais harmônica. Nesta festa o batuque é um belo estímulo para a empatia criada entre esse público fiel, de dançarinos amadores ou não. Os amigos Pedro Henrique Ferreira e Lucas Nascimento, 29 e 27 anos, são de Jundiaí e quando souberam da festa Coco de Garrafada por meio do evento no Facebook, arrumaram suas trouxas e desceram a serra. A namorada de Pedro é percursionista da banda Coco das Águas Doces, mas, para ambos, o sentimento de “fazer parte” daquilo os moveu até o centro de Santos.
Pedro Henrique defende a ideia de ocupar espaços paralelos à avenida da Praia. “A rua é pública e o povo precisa se integrar. Tem que ocupar mais, que tá pouco”. Já Lucas reforça que a música nesse tipo de reunião dá maior visibilidade a grupos e suas causas sociais. Em certo momento, uma das moças que dançava no meio da Praça, quando rodava sua longa saia branca e arrumava a postura para mostrar seu leque, fazia da sua pele morena e cabelos cacheados uma bela representação de diversas culturas.
A festa passou das 05h00. A banda já tinha retirado seus instrumentos e os equipamentos de som estavam sendo guardados também. A galera continuou se espalhando pela praça, mas dessa vez para limpar o espaço e, assim, ir embora. O domingo na Praça dos Andradas amanheceu como de costume durante o dia: muita movimentação de taxistas e pessoas que transitam entre a Rodoviária e o Terminal da viação de santos. Fora isso os mendigos continuaram ali, as latas de lixo cheias também. Não sobrou uma garrafa de Catuaba. Nenhum vestígio. Ninguém pra dizer que a festa foi “top”.
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